O que dizer de alguém que mesmo depois de passar por horrores ainda te recebe diariamente com alegria, carinho e amor? Como descrever alguém que deixou seu passado negro no passado e vive o momento, aproveita a vida até o último instante? Este alguém certamente é feliz e nos ensina que felicidade é uma opção e não uma consequência. Podemos escolher sermos felizes ao invés de esperar a felicidade nos ser entregue ou ser resultado de outros atos. É uma escolha.
Há 10 anos, em uma visita para a nossa veterinária em Salvador, onde iamos sempre por amizade, por ajudar com a rede e sistema de computador e por gostar de ajudar a cuidar dos bichos que lá ficavam, nos deparamos com uma cena de cortar o coração. Um gatinho persa preto e branco completamente debilitado, sem um dos olhinhos, sem pêlos cabeça e ainda com os pêlos do corpo embaraçados e sujos. A dra. Ednary nos contou que este gatinho era pai do gato Mignon dela, que já conheciamos há tempos, e que tinha sido doado da família que deu o Mignon para ela, para uma família que obviamente não sabia criar gato de raça (ele era puro com pedigree!) e o deixou do lado de fora da casa, até na chuva, comendo restos de comida. Ele estava subnutrido e com avitaminose. E pior, havia apanhado, não se sabe se de um cachorro ou um ser dehumano (se fosse humano não faria isso) e a tal família (também subraça de ser humano) havia levado ele em um saco de mercado dizendo para ela sacrificá-lo. Claro que ela não o fez e cuidou dele. Mas ele estava com o coração partido, algo que veterinário não consegue curar. De tão deprimido, ficava no fundo da gaiola, deitado, sem dormir, sem comer, sem vontade de viver.
A minha esposa viu o gatinho e o estado dele e foi conversar com ele. Pela primeira vez em dias, ele se levantou e foi, cambaleando de tão fraco, para ela. Neste momento, ele havia adotado ela. Ela passou a visitá-lo diariamente enquanto estava na clínica se recuperando. Quando estava forte o suficiente para ir embora, nós o levamos para casa. No primeiro dia, ele ficou na caixinha transportadora. Só saiu para comer e achar o banheiro. Ele não havia sido treinado para usar caixa de areia então foi dentro do banheiro mesmo, em um lugar bem reservado. Ele sempre gostou de privacidade. No segundo dia, já ambientado e depois de conhecer nossos outros dois gatinhos, ele saiu da caixa e sem qualquer cerimônia, pulou em nossa cama. Eu estava deitado vendo TV ao lado de minha esposa e ele chegou, não gostou do que viu e prontamente se enfiou no meio de nós dois, como quem diz, ela é MINHA e quero ficar ao lado dela! Se afaste! Mesmo quando não havia espaço entre os dois, ele começava a se alojar entre os dois até conseguir nos afastar e ficar no meio dos dois, me separando da minha esposa.
Quem o conheceu depois deste dia, se não fosse pela falta do olho direito e a cicatriz na cabeça, onde os pêlos nunca cresceram suficiente para cobrir, jamais saberia o que ele havia passado, os horrores que haviam sido feitos com ele. Ele deixou tudo isso no passado e resolveu ser feliz em sua nova casa, com sua nova humana. Nós prometemos a ele que até o fim de sua vida, fariamos tudo para mimá-lo e agradá-lo e dar a ele a melhor vida possível. Resolvemos re-batizá-lo de Nonô em homenagem ao Nonô original, o maior gato que já conhecemos. Mas isto é outra história.
Uma característica do Nonô é que ele não miava. Talvez por sequela do que passou, ele não tinha voz. O miado dele era muito baixinho e só ouvidos treinados poderiam escutá-lo. Mas ele conversava do jeito dele, baixinho, com a gente o tempo todo. Muito carinhoso e amoroso, durante todo o tempo que ficou com a gente, nunca encontrou alguém que não gostasse dele. Ele tinha o dom de fazer até pessoas que não gostam de gatos abrirem uma exceção e gostarem dele! Todos os gatos gostavam dele. A Missy, a até então mais velha, amava ele em uma relação “amo te odiar” e brigavam o tempo todo, mas não deixava de procurar por ele todos os dias.
Depois de dois anos em Salvador, nos mudamos para Curitiba novamente. Ficamos um tempo morando com a tia da minha esposa e durante este tempo, o Nonô gostava de ficar no portão “vendo o movimento”. Porém, como ele era sempre muito amável e não tinha medo de ninguém, nem mesmo cachorros em sua maior parte, alguém o roubou do jardim! Ficamos desesperados e anunciamos em todo lugar possível com cartazes que ele havia desaparecido e que recompensariamos sua volta. Certo dia, uma senhora nos liga avisando que ele está perto da casa dela. Fomos correndo e achamos ele no meio de um mato. Ele correu para a minha esposa e pulou no colo dela, feliz em vê-la. Mais uma vez ela havia salvado-o. Ele estava magrinho de fome e com os pêlos em estado de calamidade. Depois de uma visita ao veterinário, suplemento vitamínio e um bom banho, lá estava ele novamente em casa, feliz. Sempre feliz. Durante todo este tempo, a Missy procurava por ele e chamava ele o tempo todo, sentindo falta de seu amigo, talvez o único gato de quem ela já gostou. Todo mundo amava o Nonô.
Em outra ocasião, quando já moravamos em um sobrado, ele fugiu de casa, para viver alguma aventura. Ele se perdeu e achamos ele uns dois dias depois, novamente sujo e com fome. Mas voltou e ficou feliz em voltar para casa. Ele havia sido salvo pela terceira vez por minha esposa.
Depois destas aventuras, ele sossegou e resolveu ficar sempre dentro dos portões, em segurança, ou, no máximo, ir até a árvore da vizinha curtir a sombra e ver o movimento. Como bom gato baiano, ele era calmo e tranquilo. Talvez tenha vivido tanto por dormir o tempo todo! Ele também adorava deitar dentro de um vaso grande que tinhamos com um limoeiro. Ele voltava para casa cheirando a limão! Mas todas as noites, ele entrava e ia dormir no pé da cama ou perto da minha esposa. Todos os dias. Os dois sempre foram inseparáveis. Ele sempre feliz.
Dez anos se passaram e ele sempre feliz. Mudamos para um apartamento e ele ia para o deck curtir o sol, sem medo dos urubus ou da altura do apartamento. Curtia dormir no sol, entrava para comer, pedia manteiga todos os dias para mim. Certa vez, viajamos e esquecemos de avisar para a moça que ficou cuidando do apartamento e deles do gosto dele por manteiga ou comidinha especial. Ele miava para ela (baixinho) até ela ir com ele até a cozinha. Ele apontou para a comida especial (sachê de Whiskas) e ela entendeu o que ele queria. Assim mais uma pessoa sucumbiu ao charme do Nonô.
Alguns meses atrás, ele achou a sua voz. Começou a miar alto e em bom som. Podia ser ouvido do outro lado da casa! Talvez uma última conquista em sua vida, recuperar seu miado. Uma característica que nunca vamos esquecer é como ele ronronava alto! Deitado e feliz, ele poderia ser ouvido do outro lado do quarto. Inspirado no termo “white noise machine”, batizamos ele de “black and white noise machine”. Aquele ronron era mágico e fazia qualquer um relaxar e dormir. Nos últimos tempos, ele andava ainda mais carinhoso, deitando ao lado da gente e acariciando nossos rostos com sua patinha peluda e macia. Ele dormia em qualquer lugar da casa e nós o deixavamos. Ele dormia até dentro da bacia de roupas limpas, sem que ninguém brigasse com ele. Ele ganhava o que queria, comida ou carinho, colo ou cama. Nós realmente mimamos ele ao máximo.
No dia 13 de outubro de 2013, após quarto dias em um hospital veterinário, ele nos deixou. Ele não sofreu muito com um veterinário que cuidou muito bem dele. Ele já não conseguia manter a temperatura do corpo, ficando em encubadora, e convulsionava com frequência, já com função renal comprometida. Ele viveu 14 anos e nos deu 10 anos de alegria constante. Se tivesse triste, poderia sempre contar com o Nonô para te animar e te deixar feliz. E durante todo este tempo, ele foi feliz, opção que fez quando conheceu minha esposa pela primeira vez. Até o fim, quando ela se despediu dele, ele foi feliz e nos amou.
Lembre-se: